Cidades para todos: Como incluir pessoas atípicas
“Sei que teu tema é idadismo,mas as cidades são projetadas para os típicos. Pessoas atípicas acabam excluídas. Seriam as cidades eugenistas? Só uma reflexão.”
Na madrugada, quando a li, fiquei pensando no quão pouco sabia sobre o que se pesquisa e o que se faz na prática com essa camada da população, que vem crescendo. Minha resposta para a Marília foi:
"Cidades refletem a sociedade onde estão. A nossa sociedade constrói cidades para corpos jovens, saudáveis, neurotípicos (o corretor trocou por neuróticos, e não deixa de ter razão...). Nossas cidades são excludentes. É um tema a se pensar. Mulheres, idosos, pcd (que já deveria incluir as atípicas). Vou pesquisar mais sobre isso. É um tema relevante"
E aí, para quem me conhece e sabe que não resisto a um desafio, me fui a ver o que existe de pesquisa e ações práticas sobre o assunto. E lógico, ampliando para a população idosa também.
Começando pela definição do que são pessoas atípicas.
"O termo "atípico" é usado para descrever pessoas cujo desenvolvimento neurológico ou intelectual não segue o padrão típico, sendo comum em contextos de transtornos como autismo, TDAH, entre outros, mas sem limitar o conceito a um diagnóstico específico. Também é uma forma mais inclusiva e abrangente para falar sobre a diversidade nos modos de aprender e se desenvolver."
Ou seja, são pessoas que aprendem, sentem, ou se comportam de um jeito diferente da maioria, e por isso pode precisar de um suporte especial ou atenção diferenciada para se desenvolver bem. Ainda temos uma visão muito estereotipada sobre essa diversidade de pensar e compreender o mundo, como se o “normal” fosse a régua adequada para tudo. Mas o que é o normal? E como as cidades são planejadas, construídas e vividas dentro dessa ótica da normalidade?
As cidades que habitamos foram, historicamente, projetadas para uma população idealizada: jovem, neurotípica e com plena mobilidade. Os tais corpos saudáveis e jovens. Mas a realidade é muito mais diversa. Pessoas neurodivergentes, idosos e outros grupos com necessidades específicas representam cada vez mais uma parcela significativa da população urbana. E é urgente que suas vozes devam ser ouvidas no planejamento das cidades.
Há vários estudos recentes que mostram um movimento global em direção a criação de espaços urbanos mais inclusivos, que possam reconhecer e valorizar a diversidade humana em todas as suas formas. Aqui neste texto procurei reunir o que descobri em termos de pesquisas, desafios e soluções que tenham possibilidade de transformar nossas cidades. Obviamente esta não é uma revisão bibliográfica acadêmica e que podem existir mais estudos. Mas a ideia é dar um breve panorama do que está sendo feito.
Os desafios: Quando a cidade exclui
Sobrecarga sensorial e barreiras invisíveis
Para pessoas no espectro autista e outros neurodivergentes, o ambiente urbano pode ser uma fonte constante de estresse. A estrutura e o ritmo das cidades, com seus ruídos intensos, multidões, luzes piscantes e excesso de estímulos visuais, geram uma sobrecarga sensorial que limita o acesso a oportunidades e a participação na vida comunitária.
As pesquisas apontam uma lacuna crítica: a falta de um quadro teórico sobre justiça espacial para a neurodiversidade dificulta que essas comunidades reivindiquem seu "direito à cidade". Sem esse referencial, pessoas neurodivergentes ficam à margem dos processos de planejamento urbano. Ou seja, é preciso que estas populações sejam ouvidas em suas necessidades.
O envelhecimento das cidades
Enquanto isso, a população urbana envelhece rapidamente, mas a infraestrutura não acompanha. Idosos enfrentam calçadas inadequadas, transporte público inacessível e falta de espaços comunitários apropriados. A digitalização de serviços públicos, quando feita sem o devido suporte, aprofunda ainda mais o isolamento social desse grupo. Já falei sobre este problema da acessibilidade digital, um tema urgente a ser abraçado pela sociedade e poder público para fortalecer a autonomia desta população.Desigualdade que se acumula
Esses problemas não existem isoladamente. A segregação residencial, a pobreza e as moradias precárias afetam desproporcionalmente os grupos mais vulneráveis, criando um ciclo de desvantagem que limita o acesso a empregos, educação de qualidade e segurança. Um problema presente na sociedade brasileira(e mundial), a desigualdade faz com que existam abismos de atendimento e qualidade de vida e dignidade para as pessoas atipicas e idosas mais carentes.As soluções: Repensando o espaço urbano
Planejamento para a neurodiversidade
As pesquisas comprovam o que sabe na prática. Que a mudança mais importante não está apenas em ajustes de design, mas em uma transformação de paradigma. A proposta é incorporar a neurodiversidade como um valor central no planejamento urbano, garantindo justiça espacial.Exemplos práticos já implementados:
- Mesa, Arizona (EUA) tornou-se a primeira cidade certificada para o autismo, com guias sensoriais para atrações públicas e o programa "Hidden Disabilities Sunflower", que permite que pessoas com deficiências não visíveis sinalizem a necessidade de apoio.
- Zonas de tranquilidade em estações de trem, aeroportos e bibliotecas oferecem refúgios sensoriais em meio ao caos urbano.
- Transporte adaptado com vagões silenciosos em trens, mapas sensoriais das estações e equipes treinadas para lidar com a neurodiversidade.
- Design inclusivo que utiliza sinalização clara com pictogramas, paletas de cores calmantes, materiais naturais e redução de ruídos e luzes fortes.
Leitura indicada : Zoneamento para comunidades neuroinclusivas: desafios, fundamentos e lições aprendidas
Cidades amigas da pessoa idosa
A Organização Mundial da Saúde lidera um movimento global através da Rede Global de Cidades e Comunidades Amigas da Pessoa Idosa, com foco em oito áreas da vida urbana: espaços ao ar livre, transporte, moradia, participação social, respeito, emprego, comunicação e saúde..Iniciativas inspiradoras pelo mundo:
- Amsterdã instituiu uma equipe multidisciplinar com plano de cinco anos para combater demência, solidão e falta de moradia adequada para idosos.
- Toyama (Japão) adotou políticas de "cidade compacta" para melhorar o acesso a serviços públicos e promover a independência dos mais velhos.
- Gotemburgo (Suécia) desenvolveu modelos de moradia inclusivos e transporte público flexível que beneficiam toda a sociedade.
- Helsinque e Santander utilizam tecnologias como Gêmeos Digitais Urbanos e inteligência artificial para planejar cidades mais amigas do idoso.
Leitura indicada: Idosos e a cidade inteligente – Desenvolvendo práticas inclusivas para proteger e servir uma população vulnerável
O cenário brasileiro: avanços e desafios
No Brasil, o debate sobre cidades inclusivas tem ganhado força tanto na academia quanto na prática. Pela rápida pesquisa pude perceber que diversas cidades já implementam iniciativas importantes.Políticas para idosos
O Brasil integra a Rede Global de Cidades Amigas do Idoso, com 35 cidades certificadas, incluindo Porto Alegre, Curitiba, Manaus e Uberaba. Essas cidades implementaram espaços públicos acessíveis, transporte adaptado, sinalização adequada e participação cidadã de idosos em conselhos municipais. Campinas, Ribeirão Preto e Curitiba avançaram com sinalizações táteis, espaços de convivência, ônibus adaptados e calçadas rebaixadas. Senti falta de pesquisas que mostrem como estas certificações estão funcionando na prática nestas cidades. Algumas, como Porto Alegre, receberam o certificado há uma década e não sei se existem reavaliações periodicas. Um tema a aprofundar.Neurodiversidade em foco
- Cotia (SP) criou em 2025 a primeira Secretaria da Mulher, Neurodiversidade e Inclusão Social do Brasil, tornando-se referência nacional com campanhas permanentes, capacitação de servidores e incentivo ao protagonismo de pessoas neurodivergentes no planejamento urbano.
- Rio de Janeiro estabeleceu a Secretaria Especial de Inclusão (SEI-Rio) para articular políticas intersetoriais voltadas ao TEA e neurodivergências, incluindo a emissão da CIPTEA e projetos de escuta ativa junto a famílias.
- Projeto Sessão Azul, presente em cinemas de todo o país, adapta sessões para crianças autistas com luzes acesas, som baixo e ambiente acolhedor, com funcionários treinados especificamente.
- Jacareí (SP) discute marcos legais específicos para inclusão de neurodivergentes, promovendo proteção, acessibilidade e integração entre saúde, educação e urbanismo.
Pesquisa e inovação
Estudos na Zona Leste de São Paulo investigam a acessibilidade no transporte público para neurodivergentes em áreas periféricas. Arquitetos e urbanistas brasileiros desenvolvem auditorias sensoriais em ambientes coletivos, com participação direta de pessoas neurodivergentes na avaliação de espaços urbanos.O que a sociedade deve focar: Cinco princípios fundamentais
1. Participação ativa, não consulta passiva
O princípio mais importante é empoderar as comunidades atípicas para que participem ativamente dos processos de planejamento. Pessoas neurodivergentes, idosos e outros grupos devem ser protagonistas, não apenas receptores de soluções baseadas em guias de design criados por terceiros.2. Reconhecimento do direito à cidade
É essencial desenvolver um referencial teórico e político que fundamente o direito de todas as pessoas a espaços urbanos que reconheçam e valorizem a diversidade. A neurodiversidade e o envelhecimento devem ser entendidos como questões de justiça social, não apenas de acessibilidade.3. Design universal com flexibilidade sensorial
O planejamento deve incorporar desde o início elementos como zonas de tranquilidade, sinalização clara, iluminação adequada, controle de ruídos e opções de rotas alternativas. Não se trata de criar guetos, mas de oferecer flexibilidade para que cada pessoa possa navegar a cidade de acordo com suas necessidades.4. Políticas integradas e intersetoriais
A inclusão não pode ser responsabilidade de uma única secretaria ou departamento. Habitação, transporte, saúde, educação, cultura e planejamento urbano precisam trabalhar de forma coordenada, com metas claras e orçamento específico.5. Transformação cultural
Mais do que infraestrutura, precisamos de uma mudança de mentalidade. Campanhas educativas, treinamento de servidores públicos, capacitação de profissionais da construção civil e arquitetura, e valorização da diversidade neurobiológica e etária são fundamentais para criar cidades verdadeiramente acolhedoras.
As experiências internacionais e brasileiras demonstram que criar cidades inclusivas é possível e, mais importante, benéfico para toda a sociedade. Quando projetamos para as necessidades de pessoas neurodivergentes e idosos, criamos espaços melhores para todos: pais com carrinhos de bebê, pessoas com deficiências temporárias, indivíduos que simplesmente preferem ambientes mais calmos.
O sucesso dessas abordagens depende da colaboração entre governos, ONGs, organizações de base, profissionais de arquitetura e urbanismo e, principalmente, os próprios cidadãos que vivenciam diariamente os desafios urbanos.
A cidade inclusiva não é uma utopia distante. É um processo em construção, que exige escuta genuína, vontade política e reconhecimento de que a diversidade humana não é um problema a ser resolvido, mas uma riqueza a ser celebrada no tecido urbano.
Como profissionais de arquitetura e urbanismo, temos a responsabilidade e o privilégio de liderar essa transformação, projetando não para uma pessoa ideal imaginária, mas para a diversidade real das pessoas que habitam nossas cidades.
Referências
Fontes Internacionais
[1] Autism in urban planning: in search of a theoretical framework. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/23748834.2024.2404802
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[3] Neurodiversity in the city: Exploring the complex geographies. Disponível em: https://rgs-ibg.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/geoj.12512
[4] Urban Populations Are Aging. How Can Cities Adapt? Disponível em: https://www.bcg.com/publications/2025/urban-populations-aging-how-can-cities-adapt
[5] From age-friendly to longevity-ready cities. Disponível em: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC9355489/
[6] Social Conditions and Urban Health Inequities. Disponível em: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC3232417/
[7] The WHO Age-friendly Cities Framework. Disponível em: https://extranet.who.int/agefriendlyworld/age-friendly-cities-framework/
[8] The importance of gender for inclusive city building practices. Disponível em: https://www.kcl.ac.uk/we-need-to-talk-about-ageing-in-cities-the-importance-of-gender-for-inclusive-city-building-practices
[9] Nordic cities strengthen their work for age-friendly cities. Disponível em: https://nordicwelfare.org/en/nyheter/nordic-cities-strengthen-their-work-for-age-friendly-cities/
[10] Age-friendly cities and aging in place. Disponível em: https://www.rickhansen.com/news-stories/blog/age-friendly-cities-and-aging-place
[11] Leveraging Local Digital Twins for planning age-friendly cities. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0264275124006723
Fontes Brasileiras
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[BR-2] Acessibilidade para pessoas neurodivergentes na Zona Leste de São Paulo. Disponível em: https://www.sisgeenco.com.br/anais/simpurb/2024/arquivos/GT14_COM_610_820_20240807114135.pdf
[BR-3] Autismo, neurodiversidade e estigma no Brasil. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pee/a/S5FdcTLWS9bPdJwPXcdmnHz/
[BR-4] Cidades amigas dos idosos no Brasil. Disponível em: https://caosplanejado.com/cidades-amigas-dos-idosos/
[BR-5] Projeto Entre Mães Atípicas - SEI-Rio. Disponível em: https://sei.prefeitura.rio/noticias/projeto-entre-maes-atipicas-realiza-2a-edicao-as-familias-de-criancas-com-tea/
[BR-6] Cinco iniciativas que abraçam o autismo. Disponível em: https://autismoerealidade.org.br/2022/04/07/cinco-iniciativas-que-abracam-o-autismo/
[BR-7] Estratégia Brasil Amigo da Pessoa Idosa. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/pessoa-idosa/CartilhaEstratgiaBrasil.pdf
[BR-8] O que são as cidades amigas das pessoas idosas. Disponível em: https://www.icc.ufscar.br/pt-br/projetos/parcerias/coluna-envelheciencia/o-que-sao-as-cidades-amigas-das-pessoas-idosas
[BR-C1] Cotia: primeira Secretaria de Neurodiversidade do Brasil. Disponível em: https://cotia.sp.gov.br/vanguarda-cotia-e-a-1a-cidade-brasileira-a-ter-uma-secretaria-de-neurodiversidade/
[BR-C2] Secretaria de Mulher, Neurodiversidade e Inclusão Social - Cotia. Disponível em: https://cotia.sp.gov.br/mulher-neurodiversidade-e-inclusao-social-2025/
[BR-C4] Cidades inclusivas: como criar espaços urbanos para pessoas neurodivergentes. Disponível em: https://somoscidade.com.br/2025/03/18/cidades-inclusivas-como-criar-espacos-urbanos-para-pessoas-neurodivergentes/
[BR-C6] Política Municipal de Inclusão de Neurodivergentes - Jacareí. Disponível em: https://www.jacarei.sp.leg.br/wp-content/uploads/2025/03/PLE-002.2025-02_parecer-jur-Prefeito-Pol%C3%ADtica-Municipal-de-Inclus%C3%A3o-de-Neurodivergentes.pdf
Este texto foi baseado em estudos recentes sobre planejamento urbano inclusivo, políticas públicas internacionais e iniciativas brasileiras voltadas para pessoas neurodivergentes e idosos. Pesquisa feita com ajuda do Perplexity Pro App
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