Caminhar é um direito: cidades seguras e acessíveis são mais humanas e mais inteligentes

 

Imagem gerada no Chatgpt

Na Semana do Caminhar 2025 (03 a 09/08), celebramos o gesto mais humano e simples: o de mover-se com os próprios pés. Desde 2017 ela é realizada, incluindo o Dia Mundial do Pedestre, no dia 8 de agosto. O tema de 2025 será sobre “Ruas abertas para pessoas”. Mas será que realmente temos algo a celebrar? Se formos olhar a realidade de nossas cidades, este gesto se tornou um privilégio. Na maioria delas o que vemos são falta de acessibilidade. 

Em Porto Alegre, minha cidade, a chamada revitalização do Centro Histórico revela uma ferida cruel: a arquitetura da exclusão. O que deveria ser espaço de reencontro com o urbano, como sempre se caracterizou o centro da cidade, com seus edifícios e espaços históricos, virou campo minado para pessoas cegas, com calçadas niveladas ao asfalto, pisos táteis mal posicionados e lixeiras cortantes que ferem corpos e dignidades. Tudo isso em nome de uma “modernização” que ignora os princípios básicos do desenho universal. Esta não é apenas uma falha técnica. É uma cidade construída sem escuta. Sem o outro no horizonte do projeto.

Se queremos cidades para todas as idades, capacidades e histórias, precisamos urgentemente mudar a lógica que privilegia a estética midiática à custa da funcionalidade inclusiva. O envelhecimento, as deficiências sejam visuais, físicas, temporárias ou permanentes, não são exceções. São experiências possíveis (e prováveis) no ciclo da vida. Uma calçada mal pensada hoje pode ser o tropeço de todos amanhã.

Essa não é apenas uma escolha estética infeliz. É um exemplo concreto de como a ausência de escuta e de diálogo com as diferentes idades e realidades resulta em ambientes hostis, inseguros e excludentes. Não por acaso, chamamos esse fenômeno de arquitetura hostil.

Mas é possível (e necessário) construir outros caminhos. Cidades que cuidam. Enquanto Porto Alegre tropeça na invisibilidade institucionalizada, outras cidades no mundo mostram que projetar para todas as idades é um investimento em qualidade de vida, pertencimento e vitalidade econômica.

Bilbao (Espanha) transformou antigos espaços industriais em áreas verdes caminháveis e acessíveis, atraindo turismo de base cultural e impulsionando pequenos negócios locais. Bogotá (Colômbia) implementou redes de ciclovias integradas com rotas seguras para pedestres, com foco em crianças e idosos, reduzindo acidentes e estimulando o comércio de bairro. Oslo (Noruega) baniu carros do centro e ampliou calçadas, bancos e zonas de descanso, se transformando em uma cidade que convida as pessoas a estarem presentes. Melbourne (Austrália) adota o conceito de “cidade de 20 minutos”, onde todos os serviços essenciais podem ser acessados a pé, fortalecendo vínculos comunitários e a economia local. E no Brasil, Santos (SP) iniciou um plano de mobilidade voltado para o envelhecimento populacional, com mapeamento de calçadas e travessias requalificadas para facilitar o andar de quem já vive mais devagar, mas ainda tem muito o que viver.

Essas cidades compreenderam algo essencial: incluir não é gasto. É inteligência urbana. Cidades caminháveis e seguras são mais saudáveis, reduzem gastos públicos com saúde, ampliam a circulação de pessoas nas ruas, incentivam o consumo local e valorizam os espaços públicos como arenas de convivência e bem-estar.

Cidades que se pretendam inovadoras não podem ser cidades que excluem. Estamos envelhecendo como sociedade. Mas nossas cidades ainda insistem em permanecer rápidas e inóspitas. Quando a calçada fere, ela nos diz: “aqui não é o seu lugar”. Quando o banco some, ela grita: “não pare, apresse-se!”. Quando o piso tátil é interrompido por obstáculos, ela sussurra: “não pensamos em você”.

Revitalizar não pode ser sinônimo de padronizar. Muito menos de excluir. Uma cidade verdadeiramente contemporânea é aquela que compreende sua diversidade e a celebra na forma como projeta seus espaços. Uma cidade com alma é aquela que ouve seus habitantes, sejam frágeis, jovens, velhos, cansados, animados, diferentes.

E então, vamos caminhar para onde?

A urgência de repensarmos nossas calçadas, espaços públicos e a lógica de mobilidade ganha ainda mais importância diante da iminente revisão do Plano Diretor de Porto Alegre, prevista para ser votada em 2025. Este instrumento fundamental vai redefinir as regras de uso e ocupação do solo pelos próximos anos, influenciando diretamente como, e para quem, a cidade será projetada. Se não incluirmos de forma clara e prioritária diretrizes que garantam a caminhabilidade segura, a acessibilidade universal e o desenho urbano sensível às diferenças etárias e corporais, corremos o risco de consolidar uma cidade ainda mais desigual, fragmentada e hostil ao envelhecimento e à diversidade. A verticalização sem critérios humanos, o descaso com a infraestrutura de base e a exclusão silenciosa de pessoas mais fragilizadas, que não correm, não enxergam ou simplesmente precisam parar para respirar, tornam-se políticas públicas por omissão. Participar ativamente das audiências e oficinas, pressionar por regras mais inclusivas e denunciar os apagamentos é vital para construirmos uma cidade onde o direito de caminhar, com dignidade, afeto e segurança, não seja privilégio, mas um pilar urbano. Afinal, é no plano diretor que começa o caminho da cidade que sonhamos, ou o labirinto que deixaremos como herança.

É tempo de reimaginar o espaço urbano como campo de possibilidades e não de obstáculos. Tempo de envolver arquitetos, urbanistas, gestores públicos, ativistas e cidadãos comuns em processos realmente participativos. Tempo de romper com o ciclo da negligência institucional e caminhar, com firmeza, em direção a cidades cuidadoras.

Cidades que protegem quem caminha protegem sua própria vitalidade. Caminhar não é apenas um direito: é um modo de existir no mundo. E todos merecem esse chão.

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