Porto Alegre encontra os Nórdicos: Não é sobre copiar, é sobre adaptar



Esses dias estava refletindo sobre uma coisa que me incomoda há tempos: essa mania de pegar modelos urbanos "de primeiro mundo" e querer aplicar na nossa realidade como se fosse receita de bolo. Em urbanismo, olhar os países nórdicos, Dinamarca, Suécia, Noruega, como modelos a se imitar é muito falado. 

Mas calma, não estou dizendo que devemos ignorar essas referências. Pelo contrário. O que me incomoda é essa tendência de romantizar soluções estrangeiras sem entender que cada cidade tem sua própria biografia, seus próprios ritmos, suas próprias contradições.

Se até lá estes modelos não são perfeitos como muitas reportagens querem deixar crer, imagine colar de paraquedas aqui, com outra cultura e realidade socioeconômica. O modelo nórdico não é perfeito, nem mágico. É resultado de décadas de tentativa e erro, de políticas públicas consistentes e, principalmente, de uma cultura de participação cidadã que foi construída ao longo de gerações.

Os caras levam a sério algumas coisas que aqui ainda tratamos como "luxo": participação real da população no planejamento (não essa coisa protocolar que atualmente fazemos aqui), sustentabilidade que vai além de plantar umas mudas, integração efetiva entre transporte e espaços públicos, e uma obsessão saudável com reduzir desigualdades. 

Mas aqui está o ponto: eles fazem isso considerando o clima deles, a geografia deles, a economia deles, a cultura deles. É óbvio, né? Mas aparentemente não é tão óbvio assim quando vemos imagens de planejamentos que parecem ter sido copiados e colados de Copenhagen.

E é aqui que a coisa fica interessante. Porto Alegre não precisa fingir ser nórdica para ser uma cidade melhor. A cidade já foi pioneira mundial no orçamento participativo, algo que até hoje é estudado lá fora. Já tivemos histórico de conselhos municipais, movimentos sociais organizados, uma tradição de mobilização popular que muita cidade "desenvolvida" invejava.

O problema não é falta de potencial. O problema é que esquecemos nossas boas práticas e voltamos a ter aquela mentalidade opaca de colonizados que acham que lá no que chamam de "mundo civilizado" é que se faz melhor. 

Então como tentar fazer entender alguns princípios básicos que norteiam o que funciona lá e que muitos tanto admiram? Primeiro, entendendo que não estamos falando de importar prédios bonitos ou copiar layouts de ciclovias. Mas de:
  • Participação cidadã ampla: Os nórdicos envolvem todo mundo, desde crianças até idosos, no planejamento urbano. Aqui, tínhamos essa tradição, mas ela meio que enferrujou. Precisamos revitalizar e modernizar nossos mecanismos participativos, não inventar do zero.
  • Sustentabilidade real: Não é sobre colocar árvores em fotos de marketing e, na prática, permitir a poda desenfreada do que já foram corredores verdes. É sobre legislação que garante área verde mínima em cada novo empreendimento, sobre preservar e ampliar nossos parques urbanos, sobre pensar a cidade como um sistema vivo.
  • Integração metropolitana: Porto Alegre não é uma ilha. Somos parte de uma região metropolitana complexa, e qualquer planejamento sério precisa considerar isso. Os nórdicos são craques em articulação regional.
  • Densidade equilibrada: Aqui mora um dos maiores desafios. Como densificar a cidade (porque precisamos, gente) sem virar um formigueiro? Como criar centros multifuncionais que reduzam deslocamentos mas mantém qualidade de vida?
Porto Alegre tem suas próprias questões que Copenhagen nunca vai ter. Temos ocupações irregulares massivas, desigualdade social extrema, um histórico de enchentes, um clima subtropical que exige soluções específicas.

Qualquer adaptação do modelo nórdico que não considere regularização fundiária, urbanização de áreas vulneráveis e soluções climáticas locais está fadada ao fracasso.

Os nórdicos são pragmáticos. Eles testam, medem, ajustam, testam de novo. Fazem revisões constantes dos planos urbanos, monitoram resultados, não têm ego com mudança de rota.

E aqui? Como bem disse Adeli Sell, do alto de sua experiência no legislativo municipal e nos planos diretores: 

" Neste sentido, é uma afronta uma única audiência pública para toda a cidade, um espaço urbano tão díspar como é a capital Porto Alegre.

Se a cidade tem oito regiões de planejamento urbano deveríamos ter no mínimo oito audiências preliminares, uma por cada região de planejamento. E outros por segmentos, para analisar os corredores ecológicos, econômicos, culturais etc. A implementação prática dos corredores será assegurada por meio de diversas ações e instrumentos.

O Poder Executivo municipal fragmentou o planejamento urbano do ponto de vista territorial. O artigo 40, § 2º, do Estatuto da Cidade, prescreve que “O plano diretor deverá englobar o território do Município como um todo”. Apesar disto, o Poder Executivo apresentou um Plano Diretor que não engloba nem o Bairro Arquipélago, composto pelas ilhas do Lago Guaíba, e tampouco a zona rural, definida em lei. Ou seja, fragmentou-se o planejamento urbano ao deixar de fora territórios, em evidente afronta à norma legal."

As cidades são organismos vivos. Mudam todo dia. Planejamento urbano que não se adapta é planejamento morto. E planejamento urbano que olha apenas para alguns interesses não constrói cidades modernas e com qualidade de vida para todas as idades.

Não estou propondo que viremos as costas para as experiências nórdicas. Muito pelo contrário. Estou propondo que paremos de tratá-las como receita mágica e comecemos a usá-las como inspiração inteligente.

Vamos voltar a fazer diagnósticos participativos sérios nos nossos bairros. Vamos pensar corredores ambientais conectados ao transporte público. Vamos envolver universidades, empresas locais e movimentos sociais nos projetos urbanos de forma orgânica, não protocolar.

Mas vamos fazer isso sendo Porto Alegre. Com nossa história de participação popular, nossa diversidade cultural, nossos desafios específicos, nossa capacidade de reinvenção.

O modelo nórdico funciona porque eles construíram soluções para os problemas deles. Agora é nossa vez de construir soluções para os nossos problemas, usando o que aprendemos com eles, mas sem perder nossa identidade.

Afinal, uma Porto Alegre inspirada no melhor do seu mundo ainda é melhor que uma Porto Alegre que finge ser outra cidade.

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