A queda do abacateiro

Imagem de Diego Carillo

Desci apressada para um compromisso e comentei sobre as mortes de vizinhos no prédio. Quatro em um mês, constatou a faxineira. Pensava na impermanência da vida quando uma vizinha disse ser dia da árvore. Estranhei e minha memória rodou rapidamente tentando lembrar se tinha esquecido alguma data. Ao sair para a rua, soube então. Tinham cortado o abacateiro do terreno vizinho.

Imagem de Elenara Stein Leitão

O abacateiro já estava lá quando cheguei, há cinquenta anos. Era uma jovem estudante de arquitetura e minhas janelas não davam para o terreno onde ele vivia. Deve ter crescido em silêncio, mas com firmeza. Deu frutos por décadas. Muitos caiam em nosso pátio. Deve ter sombreado histórias que ninguém mais conta ou lembra. Foi testemunha de transformações urbanas, casamentos, separações, exílios e retornos. Talvez tenha abrigado mãozinhas infantis a buscar seus frutos. Era discreto como um velho sábio e, como tal, foi ignorado no fim.

Talvez, assim como as pessoas que moram por aqui, tenha seu ciclo de vida e morte. A vida tem desses mistérios. Nascemos, crescemos, realizamos ou não. Somos descartados e perecemos. O novo sempre vem como já dizia Belchior.

“...Mas é você que ama o passado

E que não vê
É você que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem…”

Agora foi derrubado. Imagino que suas raízes talvez pudessem estar ameaçando o prédio em que moro. Ou quem sabe, por atrapalhar o novo projeto de revitalização: um conjunto de lofts que promete manter a fachada antiga dos prédios da frente. Uma delas já demolida e que, reconstruída, possa servir de memória moldurada pela modernidade. O mais certo é que tenha caído por pura incompatibilidade entre o tempo da árvore e o tempo dos homens.

Imagino um diálogo entre moradores da vizinhança:

— Estão construindo ali, disse um vizinho.
— E a árvore? Perguntou um outro morador mais antigo.
— Era grande demais. Dava problema.
— Mas também dava frutos...
— Ah, mas eles vão plantar outras em locais mais adequados e tudo vai ficar bem.

Outra moradora tentou consolar:
— O progresso exige sacrifícios.
— Mas sempre os mesmos? As árvores? O silêncio? A sombra?

Pesquiso que um abacateiro leva de oito a dez anos para frutificar, se nascer de semente. Imagino que para uma árvore daquele porte, tenha levado bem mais. Talvez fosse centenária. Ou quase.

Tempo que não se planta com facilidade. Tempo que não se compra com verba de empreendimento.

Sem contar a questão do clima. Mais uma árvore cortada, menos sombra, menos umidade. Mais sol batendo no concreto. Mais calor represado entre paredes novas. As cidades respiram pelas árvores. Sem elas, viram estufas e, ironicamente, alguns afirmam de peito estufado que isso é progresso.

À noite, um pequeno diálogo ainda me perseguiu no pensamento:

— Era só uma árvore.
— Era uma árvore inteira.
— Mas a cidade precisa crescer.
— E a cidade também precisa lembrar.
— O prédio novo vai ficar lindo.
— Mas quem vai alimentar os pássaros?

O corte do abacateiro não foi apenas a queda de um ser vivo. Foi a remoção de um marco afetivo e sensorial. Uma sombra que não volta mais. Uma memória que não será reproduzida por mudas de catálogo. Talvez o novo projeto traga vitalidade, como prometem. Tomara. Mas por enquanto, tudo o que se vê pelas janelas dos vizinhos é um vazio. O antigo morador verde se foi. E a rua talvez fique mais quente, mais barulhenta e estranhamente mais pobre.

Como canta Gilberto Gil:

"Abacateiro, acataremos teu ato..

Nós também somos do mato
Teu recolhimento é justamente
O significado
Da palavra temporão

Abacateiro, serás meu parceiro solitário
Nesse itinerário da leveza pelo ar”

Mas cá entre nós: Será que ainda sabemos acatar o que é antigo, frutífero e lento? Ou seguimos preferindo o rápido, o novo, o vendável? E mais importante: Que raízes estamos dispostos a cortar e quais deveríamos, finalmente, aprender a preservar?
Foto de Uriema

Fotos: Diego Carrillo, Elenara Stein Leitão e Uriema

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