Cidades para todos: Como incluir pessoas atípicas

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Tenho me debruçado sobre a questão da inclusão nos espaços privados e públicos com mais afinco nos últimos anos. Faço parte de um coletivo que se dedica ao estudo dos processos de envelhecimento, com livros, cursos e palestras em três anos de atividade. Além do Metamorfose da Vida, também apoio o Movimento Sociedade sem Idadismo, que se propõe a debater e combater a cultura do preconceito de idade. Acompanho também, como interessada, as lutas das consideradas pessoas atípicas. E por isso esta mensagem de uma colega me abriu um grande ponto de interrogação:   

“Sei que teu tema é idadismo,mas as cidades são projetadas para os típicos. Pessoas atípicas acabam excluídas. Seriam as  cidades eugenistas? Só uma reflexão.”


Na madrugada, quando a li, fiquei pensando no quão pouco sabia sobre o que se pesquisa e o que se faz na prática com essa camada da população, que vem crescendo. Minha resposta para a Marília foi:

"Cidades refletem a sociedade onde estão. A nossa sociedade constrói cidades para corpos jovens, saudáveis, neurotípicos (o corretor trocou por neuróticos, e não deixa de ter razão...). Nossas cidades são excludentes. É um tema a se pensar. Mulheres, idosos, pcd (que já deveria incluir as atípicas). Vou pesquisar mais sobre isso. É um tema relevante"


E aí, para quem me conhece e sabe que não resisto a um desafio, me fui a ver o que existe de pesquisa e ações práticas sobre o assunto. E lógico, ampliando para a população idosa também.

Começando pela definição do que são pessoas atípicas.

"O termo "atípico" é usado para descrever pessoas cujo desenvolvimento neurológico ou intelectual não segue o padrão típico, sendo comum em contextos de transtornos como autismo, TDAH, entre outros, mas sem limitar o conceito a um diagnóstico específico. Também é uma forma mais inclusiva e abrangente para falar sobre a diversidade nos modos de aprender e se desenvolver."


Ou seja, são pessoas que aprendem, sentem, ou se comportam de um jeito diferente da maioria, e por isso pode precisar de um suporte especial ou atenção diferenciada para se desenvolver bem. Ainda temos uma visão muito estereotipada sobre essa diversidade de pensar e compreender o mundo, como se o “normal” fosse a régua adequada para tudo. Mas o que é o normal? E como as cidades são planejadas, construídas e vividas dentro dessa ótica da normalidade?

As cidades que habitamos foram, historicamente, projetadas para uma população idealizada: jovem, neurotípica e com plena mobilidade. Os tais corpos saudáveis e jovens. Mas a realidade é muito mais diversa. Pessoas neurodivergentes, idosos e outros grupos com necessidades específicas representam cada vez mais uma parcela significativa da população urbana. E é urgente que suas vozes devam ser ouvidas no planejamento das cidades.

Há vários estudos recentes que mostram um movimento global em direção a criação de espaços urbanos mais inclusivos, que possam reconhecer e valorizar a diversidade humana em todas as suas formas. Aqui neste texto procurei reunir o que descobri em termos de pesquisas, desafios e soluções que tenham possibilidade de transformar nossas cidades. Obviamente esta não é uma revisão bibliográfica acadêmica e que podem existir mais estudos. Mas a ideia é dar um breve panorama do que está sendo feito.

Os desafios: Quando a cidade exclui

Sobrecarga sensorial e barreiras invisíveis


Para pessoas no espectro autista e outros neurodivergentes, o ambiente urbano pode ser uma fonte constante de estresse. A estrutura e o ritmo das cidades, com seus ruídos intensos, multidões, luzes piscantes e excesso de estímulos visuais, geram uma sobrecarga sensorial que limita o acesso a oportunidades e a participação na vida comunitária.

As pesquisas apontam uma lacuna crítica: a falta de um quadro teórico sobre justiça espacial para a neurodiversidade dificulta que essas comunidades reivindiquem seu "direito à cidade". Sem esse referencial, pessoas neurodivergentes ficam à margem dos processos de planejamento urbano. Ou seja, é preciso que estas populações sejam ouvidas em suas necessidades.

O envelhecimento das cidades

Enquanto isso, a população urbana envelhece rapidamente, mas a infraestrutura não acompanha. Idosos enfrentam calçadas inadequadas, transporte público inacessível e falta de espaços comunitários apropriados. A digitalização de serviços públicos, quando feita sem o devido suporte, aprofunda ainda mais o isolamento social desse grupo. Já falei sobre este problema da acessibilidade digital, um tema urgente a ser abraçado pela sociedade e poder público para fortalecer a autonomia desta população.

Desigualdade que se acumula

Esses problemas não existem isoladamente. A segregação residencial, a pobreza e as moradias precárias afetam desproporcionalmente os grupos mais vulneráveis, criando um ciclo de desvantagem que limita o acesso a empregos, educação de qualidade e segurança. Um problema presente na sociedade brasileira(e mundial), a desigualdade faz com que existam abismos de atendimento e qualidade de vida e dignidade para as pessoas atipicas e idosas mais carentes.

As soluções: Repensando o espaço urbano

Planejamento para a neurodiversidade

As pesquisas comprovam o que sabe na prática. Que a mudança mais importante não está apenas em ajustes de design, mas em uma transformação de paradigma. A proposta é incorporar a neurodiversidade como um valor central no planejamento urbano, garantindo justiça espacial.

Exemplos práticos já implementados:

  • Mesa, Arizona (EUA) tornou-se a primeira cidade certificada para o autismo, com guias sensoriais para atrações públicas e o programa "Hidden Disabilities Sunflower", que permite que pessoas com deficiências não visíveis sinalizem a necessidade de apoio.
  • Zonas de tranquilidade em estações de trem, aeroportos e bibliotecas oferecem refúgios sensoriais em meio ao caos urbano.
  • Transporte adaptado com vagões silenciosos em trens, mapas sensoriais das estações e equipes treinadas para lidar com a neurodiversidade.
  • Design inclusivo que utiliza sinalização clara com pictogramas, paletas de cores calmantes, materiais naturais e redução de ruídos e luzes fortes.

Leitura indicada : Zoneamento para comunidades neuroinclusivas: desafios, fundamentos e lições aprendidas

Cidades amigas da pessoa idosa

A Organização Mundial da Saúde lidera um movimento global através da Rede Global de Cidades e Comunidades Amigas da Pessoa Idosa, com foco em oito áreas da vida urbana: espaços ao ar livre, transporte, moradia, participação social, respeito, emprego, comunicação e saúde..

Iniciativas inspiradoras pelo mundo:

  • Amsterdã instituiu uma equipe multidisciplinar com plano de cinco anos para combater demência, solidão e falta de moradia adequada para idosos.
  • Toyama (Japão) adotou políticas de "cidade compacta" para melhorar o acesso a serviços públicos e promover a independência dos mais velhos.
  • Gotemburgo (Suécia) desenvolveu modelos de moradia inclusivos e transporte público flexível que beneficiam toda a sociedade.
  • Helsinque e Santander utilizam tecnologias como Gêmeos Digitais Urbanos e inteligência artificial para planejar cidades mais amigas do idoso.

Leitura indicada: Idosos e a cidade inteligente – Desenvolvendo práticas inclusivas para proteger e servir uma população vulnerável

O cenário brasileiro: avanços e desafios

No Brasil, o debate sobre cidades inclusivas tem ganhado força tanto na academia quanto na prática. Pela rápida pesquisa pude perceber que diversas cidades já implementam iniciativas importantes.

Políticas para idosos

O Brasil integra a Rede Global de Cidades Amigas do Idoso, com 35 cidades certificadas, incluindo Porto Alegre, Curitiba, Manaus e Uberaba. Essas cidades implementaram espaços públicos acessíveis, transporte adaptado, sinalização adequada e participação cidadã de idosos em conselhos municipais. Campinas, Ribeirão Preto e Curitiba avançaram com sinalizações táteis, espaços de convivência, ônibus adaptados e calçadas rebaixadas. Senti falta de pesquisas que mostrem como estas certificações estão funcionando na prática nestas cidades. Algumas, como Porto Alegre, receberam o certificado há uma década e não sei se existem reavaliações periodicas. Um tema a aprofundar.

Neurodiversidade em foco

  • Cotia (SP) criou em 2025 a primeira Secretaria da Mulher, Neurodiversidade e Inclusão Social do Brasil, tornando-se referência nacional com campanhas permanentes, capacitação de servidores e incentivo ao protagonismo de pessoas neurodivergentes no planejamento urbano.
  • Rio de Janeiro estabeleceu a Secretaria Especial de Inclusão (SEI-Rio) para articular políticas intersetoriais voltadas ao TEA e neurodivergências, incluindo a emissão da CIPTEA e projetos de escuta ativa junto a famílias.
  • Projeto Sessão Azul, presente em cinemas de todo o país, adapta sessões para crianças autistas com luzes acesas, som baixo e ambiente acolhedor, com funcionários treinados especificamente.
  • Jacareí (SP) discute marcos legais específicos para inclusão de neurodivergentes, promovendo proteção, acessibilidade e integração entre saúde, educação e urbanismo.

Pesquisa e inovação

Estudos na Zona Leste de São Paulo investigam a acessibilidade no transporte público para neurodivergentes em áreas periféricas. Arquitetos e urbanistas brasileiros desenvolvem auditorias sensoriais em ambientes coletivos, com participação direta de pessoas neurodivergentes na avaliação de espaços urbanos.

O que a sociedade deve focar: Cinco princípios fundamentais

1. Participação ativa, não consulta passiva

O princípio mais importante é empoderar as comunidades atípicas para que participem ativamente dos processos de planejamento. Pessoas neurodivergentes, idosos e outros grupos devem ser protagonistas, não apenas receptores de soluções baseadas em guias de design criados por terceiros.

2. Reconhecimento do direito à cidade

É essencial desenvolver um referencial teórico e político que fundamente o direito de todas as pessoas a espaços urbanos que reconheçam e valorizem a diversidade. A neurodiversidade e o envelhecimento devem ser entendidos como questões de justiça social, não apenas de acessibilidade.

3. Design universal com flexibilidade sensorial

O planejamento deve incorporar desde o início elementos como zonas de tranquilidade, sinalização clara, iluminação adequada, controle de ruídos e opções de rotas alternativas. Não se trata de criar guetos, mas de oferecer flexibilidade para que cada pessoa possa navegar a cidade de acordo com suas necessidades.

4. Políticas integradas e intersetoriais

A inclusão não pode ser responsabilidade de uma única secretaria ou departamento. Habitação, transporte, saúde, educação, cultura e planejamento urbano precisam trabalhar de forma coordenada, com metas claras e orçamento específico.

5. Transformação cultural


Mais do que infraestrutura, precisamos de uma mudança de mentalidade. Campanhas educativas, treinamento de servidores públicos, capacitação de profissionais da construção civil e arquitetura, e valorização da diversidade neurobiológica e etária são fundamentais para criar cidades verdadeiramente acolhedoras.

As experiências internacionais e brasileiras demonstram que criar cidades inclusivas é possível e, mais importante, benéfico para toda a sociedade. Quando projetamos para as necessidades de pessoas neurodivergentes e idosos, criamos espaços melhores para todos: pais com carrinhos de bebê, pessoas com deficiências temporárias, indivíduos que simplesmente preferem ambientes mais calmos.

O sucesso dessas abordagens depende da colaboração entre governos, ONGs, organizações de base, profissionais de arquitetura e urbanismo e, principalmente, os próprios cidadãos que vivenciam diariamente os desafios urbanos.

A cidade inclusiva não é uma utopia distante. É um processo em construção, que exige escuta genuína, vontade política e reconhecimento de que a diversidade humana não é um problema a ser resolvido, mas uma riqueza a ser celebrada no tecido urbano.

Como profissionais de arquitetura e urbanismo, temos a responsabilidade e o privilégio de liderar essa transformação, projetando não para uma pessoa ideal imaginária, mas para a diversidade real das pessoas que habitam nossas cidades.


Referências

Fontes Internacionais

[1] Autism in urban planning: in search of a theoretical framework. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/23748834.2024.2404802

[2] Towards a set of spatial requirements for autism friendly cities. Disponível em: https://academic.oup.com/eurpub/article/30/Supplement_5/ckaa165.1393/5915831

[3] Neurodiversity in the city: Exploring the complex geographies. Disponível em: https://rgs-ibg.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/geoj.12512

[4] Urban Populations Are Aging. How Can Cities Adapt? Disponível em: https://www.bcg.com/publications/2025/urban-populations-aging-how-can-cities-adapt

[5] From age-friendly to longevity-ready cities. Disponível em: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC9355489/

[6] Social Conditions and Urban Health Inequities. Disponível em: https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC3232417/

[7] The WHO Age-friendly Cities Framework. Disponível em: https://extranet.who.int/agefriendlyworld/age-friendly-cities-framework/

[8] The importance of gender for inclusive city building practices. Disponível em: https://www.kcl.ac.uk/we-need-to-talk-about-ageing-in-cities-the-importance-of-gender-for-inclusive-city-building-practices

[9] Nordic cities strengthen their work for age-friendly cities. Disponível em: https://nordicwelfare.org/en/nyheter/nordic-cities-strengthen-their-work-for-age-friendly-cities/

[10] Age-friendly cities and aging in place. Disponível em: https://www.rickhansen.com/news-stories/blog/age-friendly-cities-and-aging-place

[11] Leveraging Local Digital Twins for planning age-friendly cities. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0264275124006723

Fontes Brasileiras

[BR-1] Neurodiversidade e cidades inteligentes no Brasil. Disponível em: https://journals.openedition.org/cidades/pdf/9045

[BR-2] Acessibilidade para pessoas neurodivergentes na Zona Leste de São Paulo. Disponível em: https://www.sisgeenco.com.br/anais/simpurb/2024/arquivos/GT14_COM_610_820_20240807114135.pdf

[BR-3] Autismo, neurodiversidade e estigma no Brasil. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pee/a/S5FdcTLWS9bPdJwPXcdmnHz/

[BR-4] Cidades amigas dos idosos no Brasil. Disponível em: https://caosplanejado.com/cidades-amigas-dos-idosos/

[BR-5] Projeto Entre Mães Atípicas - SEI-Rio. Disponível em: https://sei.prefeitura.rio/noticias/projeto-entre-maes-atipicas-realiza-2a-edicao-as-familias-de-criancas-com-tea/

[BR-6] Cinco iniciativas que abraçam o autismo. Disponível em: https://autismoerealidade.org.br/2022/04/07/cinco-iniciativas-que-abracam-o-autismo/

[BR-7] Estratégia Brasil Amigo da Pessoa Idosa. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/pessoa-idosa/CartilhaEstratgiaBrasil.pdf

[BR-8] O que são as cidades amigas das pessoas idosas. Disponível em: https://www.icc.ufscar.br/pt-br/projetos/parcerias/coluna-envelheciencia/o-que-sao-as-cidades-amigas-das-pessoas-idosas

[BR-C1] Cotia: primeira Secretaria de Neurodiversidade do Brasil. Disponível em: https://cotia.sp.gov.br/vanguarda-cotia-e-a-1a-cidade-brasileira-a-ter-uma-secretaria-de-neurodiversidade/

[BR-C2] Secretaria de Mulher, Neurodiversidade e Inclusão Social - Cotia. Disponível em: https://cotia.sp.gov.br/mulher-neurodiversidade-e-inclusao-social-2025/

[BR-C4] Cidades inclusivas: como criar espaços urbanos para pessoas neurodivergentes. Disponível em: https://somoscidade.com.br/2025/03/18/cidades-inclusivas-como-criar-espacos-urbanos-para-pessoas-neurodivergentes/

[BR-C6] Política Municipal de Inclusão de Neurodivergentes - Jacareí. Disponível em: https://www.jacarei.sp.leg.br/wp-content/uploads/2025/03/PLE-002.2025-02_parecer-jur-Prefeito-Pol%C3%ADtica-Municipal-de-Inclus%C3%A3o-de-Neurodivergentes.pdf


Este texto foi baseado em estudos recentes sobre planejamento urbano inclusivo, políticas públicas internacionais e iniciativas brasileiras voltadas para pessoas neurodivergentes e idosos. Pesquisa feita com ajuda do Perplexity Pro App


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