Arquitetura do afeto - habitar o futuro com o corpo inteiro

arquitetando ideias


A tecnologia sempre nos prometeu velocidade, eficiência, soluções. Mas o que acontece quando ela esquece a pele, o toque, a pausa? Quando as cidades ficam mais espertas, mas não mais gentis? A chamada Sociedade 5.0, concebida no Japão e cada vez mais presente nos debates urbanos, propõe um caminho diferente: um futuro onde o digital não substitui o humano, mas o amplifica. Um futuro onde a tecnologia tem coração e a arquitetura escuta. Porque não basta falar de inovação: é preciso arquitetar cuidado.

Habitar é mais do que ter onde estar. É se reconhecer no espaço. É sentir que ali se pode respirar com dignidade. É por isso que a arquitetura, nessa virada para a Sociedade 5.0, não pode ser mero pano de fundo. Ela deve ser matriz poética e funcional de inclusão, uma ponte entre a inteligência artificial e a sensibilidade humana.

Enquanto algoritmos ajustam luzes e plataformas preveem diagnósticos, os ambientes ainda falam com o corpo. Com o tropeço, a sombra mal colocada, o cheiro do piso molhado, o som abafado demais. Quem projeta precisa voltar a ouvir. Escutar com o corpo inteiro. E projetar com o ouvido colado ao chão da vida cotidiana.

A promessa das “Residências 5.0” está longe de ser um devaneio futurista. Trata-se de lares funcionais e humanizados, pensados para prevenir acidentes, otimizar a saúde e promover o bem-estar. Isso inclui, por exemplo:

  • Monitoramento de umidade com higrômetros ou sensores conectados a apps;
  • Desumidificadores elétricos em armários embutidos, prevenindo mofo e doenças respiratórias;
  • Assistentes vocais integrados à iluminação e segurança;
  • Sistemas de alarme com grau de proteção IP adequado à presença de água, como recomenda a ABNT NBR 5410 (norma técnica brasileira que estabelece as condições mínimas exigidas para instalações elétricas de baixa tensão);
  • Inteligência artificial que aprende rotinas, monitora riscos e ajusta ambientes de forma proativa.
Tudo isso converge para um único ponto: ampliar a autonomia das pessoas, especialmente das mais vulneráveis, sem lhes roubar o protagonismo.

Sabemos que na realidade brasileira, as promessas da Sociedade 5.0 esbarram em um dado brutal: boa parte da população ainda luta pelo básico. A divisão digital é real, mas a divisão sensível também. Há moradias que não abrigam, rampas que não levam a lugar algum, sensores que ignoram o analfabetismo tecnológico de quem os usa. Por isso, precisamos de uma arquitetura que seja mediadora. Que faça a ponte entre a inteligência dos dados e a sabedoria dos afetos.

Ainda assim temos exemplos de projetos que caminham nessa direção, ainda que tímidos, fragmentados ou localizados.

A Vila do Idoso, em São Paulo, é um exemplo pioneiro: um programa de aluguel social exclusivo para pessoas com mais de 65 anos, que abriga moradores desde 2007. Já na Paraíba, o condomínio Cidade Madura, inaugurado em João Pessoa, combina moradias adaptadas com espaços de convivência, saúde e horta comunitária, um modelo que respeita o envelhecimento como fase produtiva e cidadã da vida. Há ainda o programa Casa Segura, da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia (SBOT), e iniciativas como as diretrizes de Desenho Universal na Habitação de Interesse Social propostas pelo Governo do Estado de São Paulo.

Mas há também silêncios gritantes: entre os projetos premiados pela Caixa no programa “Melhores Práticas”, nenhum focava diretamente nos idosos. Em 2010, apenas 19% da população idosa da Região Norte, onde se localiza o Pará, vivia em domicílios considerados adequados. No Sudeste, o número era de 76%. Isso revela um país desigual, que precisa de abordagens regionais específicas — uma arquitetura sensível às margens.

A Sociedade 5.0 nos convida a repensar o projetar: não como imposição de formas, mas como coreografia de relações. Como se projeta afeto? Com luz que não cega. Com rampas que não desviam do caminho principal. Com móveis que não infantilizam o idoso. Com materiais que acolhem o calor da pele e o frio da insegurança.

O desenho universal, nesse contexto, é mais do que uma norma, é uma filosofia. Uma arquitetura que não exige tradução, porque já nasce poliglota nos afetos. 

Arquitetar o futuro é desenhar uma sociedade mais justa. A Sociedade 5.0 não será implantada por decreto. E cabe à arquitetura o papel de desenhar o invisível: o tempo de espera, a ansiedade de quem envelhece, o medo de quem nunca foi escutado em um projeto público. O arquiteto do futuro é um tradutor sensível entre mundos. Um profissional que não tem medo de trabalhar com engenheiros, cuidadores, idosos, jovens, educadores populares. Alguém que projeta com o coração pulsando junto ao lugar.

Talvez o maior desafio não seja técnico. Talvez seja poético. Ético. Relacional. O desafio de resgatar a dimensão sensível da profissão. De sair das telas e ir ao quintal. De ouvir o som das rodas na calçada. De entender que arquitetura é sempre mais do que edifício: é possibilidade de encontro.

E se a Sociedade 5.0 quiser realmente ser humana, a arquitetura terá que reaprender a ser pele, abrigo, voz. Lugar onde a tecnologia toca o afeto, e não apenas o botão.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

10 motivos para NÃO fazer arquitetura

Ideias de enfeites de Natal em Macramê

Calungas, a representação da escala nos desenhos