A ambição das coisas miúdas de MANUEL DA COSTA PINTO


foto Elenara Stein Leitão

Nas minhas pesquisas de arquivos, volta e meia encontro algum texto interessante. Hoje a pesquisa era sobre Carlos Drummond de Andrade e acabei encontrando essa crônica, publicada na FSP de 11/02/2007, chamada de:
 

A ambição das coisas miúdas

Sonhando com hortas e mercadinhos, Lucio Costa se aproxima da visão de mundo de Drummond e Bandeira 

MANUEL DA COSTA PINTO

"A solução apresentada é de fácil apreensão, pois se caracteriza pela simplicidade e clareza do risco original (...). É assim eficiente, acolhedora e íntima. É ao mesmo tempo derramada e concisa, bucólica e
urbana, lírica e funcional.
" Com essas palavras, ao final do "Relatório do Plano Piloto de Brasília", Lucio Costa sintetizou o espírito que procurara dar ao
projeto da nova capital, um amálgama das fórmulas de Le Corbusier com elementos do modernismo brasileiro.

Elaborado mais de 20 anos depois da "Carta de Atenas" (redigida em 1933 pelo urbanista francês para lançar as bases da arquitetura funcionalista), o projeto de Lucio Costa constitui sua mais ambiciosa realização, ao lado de Chandigarh, cidade planificada na Índia pelo próprio Le Corbusier, nos anos 50.

Um dos itens da "Carta de Atenas" dizia que "as chaves do urbanismo estão nas quatro funções: habitar, trabalhar, recrear-se (nas horas livres), circular" -passagem retomada por Lucio Costa quando define a futura capital brasileira como "cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas ao mesmo tempo cidade viva e aprazível, própria ao devaneio e à especulação intelectual".

O relatório é pródigo em prescrições e prevê desde a numeração das superquadras e as siglas dos endereços até a disposição das árvores ("extensas faixas sombreadas para passeio e lazer") e o percurso que os ônibus fariam, permitindo ao viajante ver o eixo monumental numa "despedida psicologicamente desejável".

Emblema monumental

Tão monumentais quanto os eixos que cortam a cidade são as ambições de Lucio Costa: trata-se de edificar a cidade "não apenas como urbe, mas como civitas". Essas intenções civilizatórias vão de encontro ao sentido utópico da "Carta de Atenas" -mas de algum modo também contradizem a formação das cidades coloniais portuguesas.

Afinal, se a criação de Brasília é "um ato deliberado de posse, (...) um gesto de sentido ainda desbravador, nos moldes da tradição colonial", a tradição à qual se refere o urbanista pertence a uma outra experiência histórica.

Tanto que seu relatório usa os mesmos termos empregados por Sérgio Buarque de Holanda para contrapor as desordenadas cidades lusitanas ao
caráter planificado das cidades hispano-americanas.

"O próprio traçado dos centros urbanos na América espanhola denuncia o esforço determinado de vencer e retificar a fantasia caprichosa da paisagem agreste: é um ato definido da vontade humana", escreveu este
em "Raízes do Brasil".

Racionalidade e funcionalidade contrapõem-se ao legado da urbe
espontânea, que deve seu perfil à  rotina de uma "moral de negociantes", e não àquela razão abstrata que em outros lugares, segundo Buarque de Holanda, transforma a cidade em "produto mental".

Brasília seria então um emblema tanto da mentalidade iluminista, que confia na capacidade de se autodeterminar, como do modernismo brasileiro, no que este representou de negação do legado lusitano.

A capital, escreve Lucio Costa, será "monumental não no sentido de ostentação, mas da expressão palpável, por assim dizer, consciente daquilo que vale e significa".

O viés antiornamental e antitradicional, portanto, não cancela os pequenos remansos que representam um "organismo plasticamente autônomo na composição do conjunto" -assim como, na poesia modernista, a
anti-retórica e a aversão ao beletrismo fazem com que a transgressão lingüística conviva com o apreço pelos aspectos palpáveis do cotidiano. 

Quando Lucio Costa fala dos terrenos reservados para a horta e o pomar, quando lembra que é preciso preservar um lugar para mercadinhos, açougues e quitandas, é toda uma poesia da coisa miúda, aquele lirismo que Manuel Bandeira e Drummond foram buscar nas esquinas da cidade provinciana, que reaparece no projeto dessa metrópole sem esquinas.

Foto de Elenara Stein Leitão

Cidade que mesmo depois de sair do papel parecia "traçada no ar", "tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado" (assim escreveu Clarice Lispector numa crônica de 1974), Brasília possivelmente não correspondia às utopias de Lucio Costa.

Ele sugere isso ao mostrar, com uma ponta de ironia, que as diferenças entre as superquadras permitiriam "as gradações próprias do regime vigente". Por outro lado, confiava que o planejamento poderia propiciar "num certo grau a coexistência social, evitando-se assim uma indevida e indesejável estratificação".

Pensando assim, talvez estivesse seguindo os princípios reformistas de Le Corbusier, que, ao formular a antinomia "arquitetura ou revolução",
propunha evitar, pelo planejamento urbano, os males inerentes às transformações radicais.

Mas a revolução que tomou Brasília pouco depois de sua inauguração, como se sabe, era de outra natureza.



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